Um dos mais misteriosos animais das profundezas do oceano vive catalogado em um laboratório no Museu de História Natural de Santa Bárbara (Califórnia, EUA). Recipientes recheados com apêndices gelatinosos alinham as prateleiras de uma sala, do chão ao teto, e os olhos turvos parecem ver através do álcool conservante. A etiqueta na prateleira diz: Vampyroteuthis infernalis – a famosa lula-vampiro.
© 2004 MBARI
Normalmente, não há luz do sol no habitat da lula-vampiro. Com cerca de 30 cm de comprimento, ela vive juntamente com vários outros animais de aparência curiosa, em profundidades que variam de 500-3000 metros, em uma zona onde o oxigênio é baixo e fótons são raros.
Sobreviver numa escuridão asfixiante, de acordo com um novo estudo, tornou a estratégia de reprodução da lula-vampiro diferente de qualquer um de seus parentes, o que possivelmente possibilitou o seu amplo tempo de existência na Terra.
“O estudo nos deu uma maneira totalmente nova de entender como alguns cefalópodes reproduzem, e também nos deu a primeira visão sobre a extensão da vida deste animal”, diz Kathrin Bolstad, uma especialista em cefalópodes (teutologista/teutóloga) da Universidade de Auckland na Nova Zelândia, que não estava envolvida no trabalho. “Cada pedacinho minúsculo do quebra-cabeça sobre os animais do fundo do mar, que possamos juntos unir, é um avanço fantástico.”
Apesar do nome, a lula-vampiro não é um predador agressivo, nem se alimentam de sangue. Ela desliza lentamente através das profundezas, alimentando-se de detritos e plâncton. “Ele tem um ritmo lento de vida”, diz Henk-Jan Hoving, biólogo marinho do Centro Helmholtz de Pesquisa Oceânica em Kiel, Alemanha. Hoving vem estudando lulas por mais de uma década. Ele notou que a coleção do museu continha um grande número de fêmeas, que puderam lhe permitir desvendar as especificidades da estratégia reprodutiva dessa misteriosa lula.
Foto: David Shultz
Duas lulas vampiro conservadas em álcool no Museu de História Natural de Santa Barbara.
Sua pesquisa, publicada na revista Current Biology, sugere que diferentemente da maioria dos cefalópodes, a lula vampiro passa por vários ciclos reprodutivos durante a sua vida. Isto contrasta dramaticamente com outras espécies de lulas e polvos, que se reproduzem em um evento espetacular e morrem logo em seguida. Vários eventos de desova são muito menos custosos e se adequam ao estilo de vida de baixo consumo energético desta lula. “Eu não acho que esse ritmo lento de vida permita que um grande evento de desova reprodutiva aconteça como nas outras espécies”, diz Hoving.
Para o novo estudo, Hoving e colegas dissecaram 47 lulas fêmeas. Similar aos seres humanos, as células somáticas da lula amadurecem no ovário e são apoiadas por uma concha de células conhecidas como folículo. O óvulo imaturo é finalmente lançado durante a ovulação, mas os folículos são deixados para trás. Felizmente para a equipe, o ovário reabsorve esses folículos pós-ovulatórios, muito lentamente nas lula-vampiro, permitindo que os pesquisadores contem e caracterizem os diferentes lotes de ovos produzidos pelas fêmeas maduras.
Usando os folículos de desovas da lula-vampiro, os pesquisadores puderam fazer várias descobertas surpreendentes. Em primeiro lugar, ao contrário de todas as outras lulas, a lula-vampiro tem uma fase de repouso gonadal, ou seja, há momentos em que o ovário não tem óvulos em crescimento ou maduros. Os autores suspeitam que o período de descanso entre os lotes de ovos permite que as fêmeas armazenem energia suficiente para iniciar um novo ciclo reprodutivo. Além disso, parece que os ovos em desenvolvimento podem ser reabsorvido pelo ovário, permitindo economizar energia.
A visão sobre a vida reprodutiva das lulas também ajudou Hoving e sua equipe a refinar suas estimativas sobre quanto tempo os indivíduos podem viver. A maioria das fêmeas no acervo do museu ovularam cerca de 38 vezes e continham células reprodutivas suficientes para mais 65 ovulações. “Se assumirmos de 38 à 100 eventos desova durante a vida, a duração do estágio adulto é de pelo menos de 3 à 8 anos nestes espécimes, com o tempo de vida total superior a estes números,” escreveram os autores. Bolstad afirma que o estudo “nos deu o primeiro insight sobre a possível extensão de vida que deste animal pode ter.”
Há, no entanto, um monte de fatos desconhecidos que precisam ser respondidos antes de o tempo de vida poder ser confirmado com mais certeza. Os pesquisadores ainda não sabem quanto tempo leva um folículo para ser reabsorvido completamente. Eles também não sabem qual o tempo da fase de repouso gonadal, o tempo entre eventos de desova, ou quanto tempo leva um ovo para atingir a maturidade. “Seria bom manter os animais em laboratório vivos por tanto tempo quanto possível para tentar descobrir o quão rápido eles crescem”, diz Hoving.
Infelizmente, o estudo não foi capaz de identificar quaisquer tendências em quando ou onde a desova ocorre. Mesmo sendo muito tentador entender como a lula-vampiro se reproduz em locais específicos na escuridão total, tal descoberta vai ter que esperar, mas a espera é provavelmente o que a lula vampiro faz de melhor.
Fonte: Science